Modernismo e Tropicalismo: o lirismo que é libertação
- IFMUN Catanduva
- 18 de ago. de 2021
- 5 min de leitura
A imagem da postagem é uma colagem feita a partir da fotografia de Olivier Perroy, retratando alguns dos tropicalistas (1967) com uma fotografia de autor anônimo, retratando alguns dos modernistas da 1ª fase (1924).
“Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem-comportado
[...]
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
[...]
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”
(Poética, Manuel Bandeira)
“[...]
Eu organizo o movimento
Eu oriento o Carnaval
Eu inauguro o monumento
No Planalto Central do país...
[...]
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão
[...]”
(Tropicália, Caetano Veloso)
Entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, um grupo de músicos, pintores, escritores e demais artistas se reuniram e promoveram diversas manifestações artísticas que divergiam das vigentes na época. Essa longínqua semana de fevereiro é conhecida como Semana de 22 ou Semana de Arte Moderna, sendo considerada o marco para o início do Modernismo, o movimento artístico-cultural que perdurou até meados da década de 1970, quando o Pós-modernismo se consolidou. Os artistas que fizeram parte do evento ficaram conhecidos como heróis da Arte nacional e protagonizaram a 1ª fase do Modernismo, acabada na década de 1930, quando novos artistas inauguraram a 2ª fase modernista, durando até o final da Segunda Guerra Mundial, período em que a 3ª e última fase modernista se inicia. Entre os artistas da 1ª fase, conhecida como fase heroica, destacam-se: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. Esses e os demais artistas do movimento abalaram as manifestações artísticas correntes no período, procurando construir uma nova Arte brasileira, que se voltasse para suas raízes e não seguisse nenhuma regra na escrita de poemas, na composição de músicas, etc. Além disso, fazia quatro anos desde o fim da Primeira Guerra Mundial, sendo um período conhecido como Entre Guerras, e os artistas, os quais ainda estavam sensibilizados com os horrores do conflito, buscavam uma forma de expressar o terror que envolveu o Brasil durante o período e expor as mazelas sociais do país. Assim, juntando a busca pela identidade nacional, a inovação na Arte e a expressão dos sentimentos do período Entre Guerras, os artistas do Modernismo criam obras pautadas na ironia, na experimentação e na crítica aos problemas sociais. Por subverterem os ideais artísticos da época, os modernistas foram subestimados por fugirem ao padrão, como é visto na História da Arte brasileira, que revela um comportamento hostil da população moralista quando se depara com manifestações artístico-culturais que fogem dos padrões e põem o dedo nas feridas nacionais.
Anos depois, quando o Pós-modernismo começou a eclodir, um novo movimento surgiu, também na busca das raízes brasileiras, procurando se expressar e resistir contra a opressão: o Tropicalismo. O movimento ocorreu em um curto período de tempo, centralizando-se nos anos de 1968 e 1969, pois o país estava imerso na Ditadura Militar, iniciada em 1964, obtendo seu auge na década de 1970 e finalizando em 1985. Tal regime não permitia manifestações artísticas de caráter crítico, censurando-as. Assim, o Tropicalismo não durou muito. Diferentemente da 1ª fase modernista, na qual a Literatura se destacou, no Tropicalismo foi a música que obteve maior evidência. O seu início acontece 46 anos depois da Semana de 22, com a estreia de um álbum.
Em Julho de 1968, 11 artistas, entre eles cinco cantores (Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão e Tom Zé), uma banda (Os Mutantes), dois poetas (Torquato Neto e Capinam) e um maestro (Rogério Duprat), lançaram o álbum "Tropicália ou Panis et Circencis", contendo 12 músicas que divergiam completamente das músicas da época. Assim, mais uma vez um grupo de artistas se unia para criar uma Arte brasileira moderna e distinta da vigente no período, com experimentações, busca pela identidade nacional e resistência contra a opressão. Além disso, foram subestimados pela sociedade do período da mesma forma.
Abaixo, é possível observar duas imagens. À esquerda, uma fotografia que se tornou emblemática ao falar da 1ª fase modernista, reunindo alguns artistas do período. À direita, a icônica capa do álbum "Tropicália ou Panis et Circencis", criada por Rubens Gerchman a partir de uma foto de Olivier Perroy:

Há um detalhe semelhante entre as imagens que pode passar despercebido para o observador, mas foi o ponto de partida para a elaboração desta análise. Nas duas imagens, um homem sentado no chão se destaca como o centro da fotografia. Na primeira, o homem é o escritor Oswald de Andrade e na segunda é o cantor Gilberto Gil. O músico, como forma de referenciar o movimento modernista, que teve uma origem muito semelhante ao Tropicalismo, senta-se da mesma forma que o poeta.
Nas duas imagens, vemos alguns dos artistas dos dois movimentos, responsáveis por se revoltarem contra a Arte e sociedade vigentes, mas o que chama atenção são os elementos estéticos, presentes na capa do disco, que passam a servir de recursos para a subversão. A sociedade havia mudado e o Pós-modernismo surgia. Era necessária uma mudança mais significativa na estética e Arte brasileiras. A década de 1970 começava e a Bossa Nova, o conservadorismo e o moralismo estavam em cheque. No entanto, uma opressão e sentimento de horror em frente à realidade se formavam de forma muito mais presente do que no período Entre Guerras. A Ditadura Militar sufocava qualquer forma de Arte subversiva e procurava suprimir as ideias de mudanças na organização social levantadas pelos tropicalistas e demais revoltosos da época. A crítica social por meio da ironia continua, mas o que marca o Tropicalismo são as críticas implícitas que procuram enganar os censores das obras do período.
No final da década de 1960, o pós-modernismo começou a principiar, e os tropicalistas, presentes nesse movimento, procuraram inovar mais do que os modernistas, mas ainda seguiram o que os precursores iniciaram. Então, na poesia, por exemplo, o verso livre, originado na 1ª fase, permaneceu, mas os escritores quiseram escrever poemas mais modernos que inovavam ainda mais e provocavam "um filete de sangue nas gengivas" após sua leitura, como apresenta Ana Cristina Cesar, no poema "olho muito tempo o corpo de um poema". É um novo período que se iniciou e procurou ir além de onde os modernistas chegaram. Nas imagens comparadas, é possível observar um elemento que corrobora essa afirmativa. A escolha de roupas extravagantes é um passo além nessa revolta, é a preocupação com a estética e com o fim do conservadorismo. Não é apenas o "Abaixo os puristas" de Manuel Bandeira. É o adeus aos ternos e ao que era conhecido como Arte até o momento, porque, afinal de contas, os tropicalistas inauguram um monumento no Planalto Central do país. Assim, no movimento, os ideais que movimentaram os modernistas ressurgem e a Arte brasileira, mais uma vez, sofre mudanças significativas.
Na Semana de 22, é feita a leitura do poema "Os sapos'', de Manuel Bandeira, no qual o autor critica a poesia parnasiana vigente; já no final da década de 1960, os tropicalistas lançam músicas que seguem o caminho contrário ao da Bossa Nova. Dois movimentos de artistas que, mesmo em cenários distintos, sentiram a necessidade de mudança e inovação. Ao buscarem o lirismo que é libertação, criaram duas das mais importantes correntes artísticas do século XX, revolucionando a Arte e sociedade brasileiras e influenciando as manifestações artístico-culturais desde a década de 1920 até atualmente.
Lucas Henrique Navarro
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